“Comprar, jogar fora e comprar: a história da obsolescência programada”

3 de março de 2017


“Não existem passageiros na espaçonave Terra, somos todos tripulantes.”

(Marshall McLuhan)

Quando discutimos sobre o impacto da tecnologia em nossas vidas, qual é o senso comum? Geralmente, enfatizamos muito mais os efeitos positivos da tecnologia, certo? Por exemplo, como o acesso a informações e consumo melhoram a qualidade de vida das pessoas, como é importante impulsionar a economia e como o ato de consumir é benéfico para gerar empregos e bem-estar social.

Quando uma sociedade é estruturada em função do consumo, como é o caso da nossa, é importante manter as pessoas consumindo, pois comprar gera crescimento econômico e emprego. É dessa lógica que nasce o conceito da obsolescência programada, quando um produto é projetado para estragar antes da hora necessária, gerando um consumo desnecessário. É natural que os objetos que compramos estraguem com o tempo e uso; entretanto, muitos produtos poderiam durar mais se não fossem feitos para estragar rapidamente. A economia do consumo que nasce no pós-Segunda Guerra terá como motor de expansão a obsolescência programada. As indústrias, para não perderem suas reservas de mercado, irão deliberadamente diminuir a vida útil de seus produtos.

Um dos primeiros setores a desenvolver a obsolescência programada na indústria mundial foi a produção de lâmpadas. As primeiras lâmpadas produzidas eram feitas para durar muito, até décadas. O documentário Comprar, jogar fora e comprar, dirigido por Cosima Dannoritzer e visto pelos alunos do Ensino Médio em 17 de fevereiro – atividade realizada pelos professores Kauê (Geografia), Lydia (Biologia) e Filipe (Geografia) –, apresenta a lâmpada mais velha do mundo, que já completava em 2011 mais de cem anos e, ainda nos dias hoje, está acesa no prédio do Corpo de Bombeiros de Livermore, Califórnia. Os industriais de lâmpadas do mundo inteiro se uniram, em comum acordo, limitando o tempo de vida útil das lâmpadas para mil horas, e isso se tornou um padrão para a produção de lâmpadas no planeta. Esse cartel, chamado Phoebus, era constituído por empresas, entre outras, como Philips, Osram, GE e Lâmpadas Teta. O documentário também trata da produção de lâmpadas da Alemanha Oriental, uma economia que não fora estruturada pelo consumo e que precisava aproveitar o máximo de seus parcos recursos naturais. A lógica era a durabilidade dos produtos, para que as próximas gerações pudessem também produzir usando os mesmos recursos. Com o surgimento do movimento ambientalista no Ocidente, na década de 1960, começamos a questionar a relação recursos naturais/sociedade de consumo, assim apresentando um novo paradigma: a sociedade de consumo é ambientalmente e economicamente sustentável?

Atualmente, as indústrias de eletroeletrônicos e de Informática são as que mais se utilizam dessa estratégia – a obsolescência programada – para manter para sempre sua reserva mercado. A lógica do crescimento econômico parte justamente da alienação do consumo. Mas no que consiste essa alienação?

Quando compramos e consumimos os produtos e os descartamos, nós nos damos por satisfeitos porque a maioria das pessoas pensa que contribuiu de forma positiva para o sistema, trabalhando e consumindo. Entretanto, para onde foi aquele iPod que joguei fora há cinco anos? Para onde foram aqueles monitores grandes que povoavam todas as salas informatizadas e hoje foram substituídos pelas telas planas? Para onde foram todas aquelas placas, chips, televisões, celulares? Quanto foi gasto de energia e recursos naturais para fabricação desses produtos? O planeta Terra pode absorver toda essa demanda por recursos e todos os resíduos gerados pelo consumo em massa?

Muitas vezes não pensamos nessas questões porque não precisamos viver próximos dos lugares onde todo esse lixo deságua. Quando consumimos um produto eletrônico, não nos vem à cabeça nada sobre uma área poluída pela mineração ou por um lixão digital porque isso está distante de nossa realidade. Ficamos só com a parte boa do consumo; sem perceber, na maior parte dos casos, somos também afetados por esses impactos, pois eles atingem as mais diversas escalas de alcance, da local à global.

O Agbogbloshie, na cidade de Accra, em Gana, é o maior lixão digital do mundo. É lá que a maior parte do lixo digital do mundo vai parar; lá podem ser encontrados aparelhos de todas as grandes marcas – IBM, Apple, Intel, entre outras –, que foram consumidos principalmente pelos habitantes dos EUA e da Europa Ocidental. Engolidos pela alienação do consumo, não nos passa pela cabeça o que acontece quando se joga algo fora; é como se isso simplesmente desaparecesse. Conhecer a realidade de Agbogbloshie é reconhecer a finalidade do consumo e que isso tem um impacto geográfico, que afeta a vida de muita gente e de variados tipos de ecossistemas, rios, solos, lençóis freáticos etc. Mas de quem é a responsabilidade? Como podemos mudar um quadro como esse, que sempre nos foi apresentado como a única alternativa possível para o mundo em que vivemos? É possível vencer a obsolescência programada e adotar um modo de vida mais consciente dos impactos socioespaciais?

A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu ser proibido enviar lixo digital para outros países, de acordo com a Convenção da Basiléia de 1989. Então, como os países desenvolvidos enviam esse lixo todo? Usando um argumento de que são materiais de segunda mão, quando na verdade mais de 60% dos equipamentos que chegam aos países africanos não têm mais condições de uso. Então, fica evidente a grande responsabilidade moral e política dos países desenvolvidos que, muitas vezes, burlam as leis internacionais e enviam lixo digital para países pobres, para não ter o ônus da obsolescência programada, um lixo altamente tóxico. Para mudar esse quadro de consumo desenfreado de recursos naturais é preciso reduzir o consumo.

O Planeta Terra tem uma capacidade para absorver e renovar recursos, mas o tempo em que isso ocorre pode demorar milhões de anos. Se o mundo consumisse o que um estadunidense consome, a Terra teria capacidade para 1,5 bilhão de pessoas. Portanto, precisaríamos de cinco planetas para sustentar essa pegada ecológica. Agora, por outro lado, se o mundo consumisse o que um indiano médio consome, a Terra teria capacidade para absorver 15 bilhões de pessoas. Temos de exigir, como consumidores, produtos mais longevos, mudar uma mentalidade de consumo e incutir a ideia de reúso, trocas, reciclagem, escambo etc.

Doravante, poderemos perseguir a ideia de desenvolvimento sustentável em que a natureza e a sociedade sejam os principais motivos do desenvolvimento tecnológico, não o consumo em massa e uma economia de crescimento que nos é apresentado como o único caminho possível para humanidade. O meio ambiente e os seres humanos não poderão esperar por muito mais tempo. A contagem regressiva já começou.

 

 

Filipe Giuseppe Dal Bo Ribeiro é professor de Geografia e organizou, com a professora Lydia (Biologia) e o professor Kauê (Geografia), um debate no ciclo Cinema e Saber sobre os temas propostos aqui.