Ler Shakespeare; ler o mundo
22 de setembro de 2017
A capacidade de leitura de um aluno ao longo do Ensino Fundamental II sofre interferência importante do próprio processo de maturação neurológica da criança, que, aos poucos, se torna um adolescente.
Com uma capacidade mais sofisticada de pensar, o aluno chega ao 8º ano e vai sendo cada vez mais capaz de interpretar fatos desde múltiplos pontos de vista e cada vez menos apegado a verdades categóricas.
Trata-se de uma alteração fundamental quando o assunto é a abordagem dos livros de literatura. Mais crítico, o leitor que chega aos 13 anos precisa ser desafiado não apenas a explicar ou justificar elementos do livro lido, mas, sobretudo, a posicionar-se diante deles e defender essa posição por meio de argumentos.
Cientes dessas características, as equipes de História e Língua Portuguesa aliaram-se em uma proposta: se a ausência de respostas fáceis e fórmulas unilaterais de leitura da realidade é o que se busca, torna-se certeira uma sequência de atividades com um nome da literatura como William Shakespeare e com um período histórico de transformações e repercussões importantes como o Período Elisabetano.
A partir de uma minuciosa adaptação de Mário Quintana, os alunos do 8º ano leram O mercador de Veneza, clássico shakesperiano que, do alto de seus quatro séculos de publicação, ainda permite a reflexão sobre temas como a discriminação, a desigualdade, a violência e o papel da mulher na sociedade.
Em uma das atividades orientadas, os alunos participaram de um debate regrado em que deviam ocupar o papel de acusadores ou de defensores de Shylock, um agiota judeu que vê numa negociação com o comerciante cristão Antônio a chance de se vingar das ofensas que deste sofrera por conta de diferenças étnicas (saiba mais sobre o enredo aqui).
E é a genialidade com que Shakespeare cria suas personagens – com extrema humanidade e, consequentemente, altamente complexas – que leva os alunos, ao longo desse debate, a perceber a fragilidade de julgamentos e impressões superficiais. Experiências como essa, mais do que apenas formar leitores críticos, contribuem para a formação de pessoas, de cidadãos críticos, capazes de enxergar as nuances presentes nos problemas e fugir do maniqueísmo fácil do bem contra o mal.
Como complementação desse encontro desestabilizador com a literatura de Shakespeare, os alunos puderam assistir ao espetáculo teatral Othelito, da Cia. Vagalum Tum Tum. O grupo especializou-se em realizar releituras das tragédias shakespearianas a partir da linguagem clownesca e da Commedia dell arte. Diferentemente do que se possa pensar, ao evocar um texto trágico desde a perspectiva da comédia, a Companhia antes potencializa do que anula as problemáticas ali presentes, e a roda de conversa ao final do espetáculo pôde consolidar essa percepção por parte dos estudantes, que tiraram dúvidas sobre essa e outras questões.
Seguindo um dos pilares curriculares da Escola Móbile, a abordagem de Shakespeare em diferentes linguagens, pensada pelas equipes de Língua Portuguesa e História do 8º ano, fomenta a ampliação do universo cultural dos alunos de maneira contextualizada. Trata-se de um percurso inevitável para educadores que visem à formação de indivíduos não apenas críticos, mas também sensíveis.