Polêmica sobre o livro de Hitler
24 de março de 2016
Desde o dia 1º de janeiro de 2016, o livro Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler, tornou-se obra de domínio público. Isso significa que seus escritos podem ser editados e comercializados livremente em livrarias do Brasil inteiro, sem qualquer restrição. No entanto, um juiz do Rio de Janeiro, Alberto Salomão, determinou a proibição de “venda, impressão ou divulgação” da obra do líder nazista.
A partir dessa proibição, o tema se converteu numa polêmica ocupando espaços nos jornais, na televisão e em outras mídias. Aproveitando a discussão que se seguiu, decidimos transformá-la em tema do primeiro Pausa pro Debate de 2016 com a seguinte indagação: ‘Minha Luta’, o manifesto nazista de Adolf Hitler, deve ser livremente comercializado como mais um produto à disposição do consumidor?
Dois alunos do 3º ano foram convidados para preparar argumentos para o debate, cada um deles assumindo uma posição diferente – a favor ou contra – em relação à publicação e divulgação da obra, como dois advogados num tribunal. Pedro Sant’Anna, que advogou a favor da proibição, concluiu sua exposição afirmando que:
“(…) Sou, portanto, contrário à publicação do livro de Hitler no Brasil. Sobretudo porque proibir a circulação comercial de Minha Luta é uma medida necessária como forma de preservar as liberdades sociais e de proteger os direitos humanos. É também um modo de impedir o crescimento de discursos antissemitas e racistas na sociedade. Por fim, porque tal medida é constitucional e está dentro dos termos da lei brasileira. E porque, em tempos como os atuais, em que ainda são comuns atos de ódio e de violência contra alguns segmentos da população, colocar em circulação ideias nocivas como as de Hitler é algo extremamente perigoso.”
No papel contrário, como defensor da publicação e circulação do livro, Ionatan Gottfried, encerrou sua defesa destacando:
“(…) Ressalto também que o livro está permitido para ser circulado na Alemanha e em Israel, onde foi liberado em 1999 e proporcionou grandes avanços nas pesquisas históricas sobre o período. Dessa forma, a construção de uma memória coletiva universal do Holocausto pressupõe a transformação de traumas em lições, de comoção em consciência histórica, de dor em ensinamentos. E a principal coisa que consolida essa memória é a publicação de Minha Luta, obra-mãe da maior catástrofe da história da humanidade.”
O encontro contou com expressiva participação dos alunos, que debateram questões importantes como o tema da liberdade de expressão e os riscos de se criar um precedente de censura ao proibir a publicação dessa obra.
O envolvimento dos estudantes com o tema proposto neste Pausa pro Debate reforça nossa crença de que é imprescindível criar espaços de discussão que contribuam para desenvolver habilidades de comunicação oral e de argumentação, mas, sobretudo, em tempos tumultuados, de poder tratar as divergências de opinião e posicionamento com respeito e cordialidade.
Beto Candelori é professor de Ética e Cidadania e coordenador do Pausa pro Debate.
Conheça a seguir os textos escritos pelos alunos.
Por que não proibir o livro de Hitler?
(Ionatan Gottfried)
Luba nasceu em Lodz, na Polônia. Quando se inicia a guerra em meados de 1930, Luba perdeu quase todos os membros de sua família: seus pais, seus 4 irmãos e seu marido. Todos mortos pelos nazistas. Restaram apenas ela e sua pequena filha, Débora. Conseguiu fugir de Lodz, imigrando junto com Débora para uma pequena cidade na periferia polonesa. Conseguiu tornar-se governanta em uma casa de uma família rica e tradicional polonesa, porém teve problemas para encontrar um lugar seguro para sua garota. Após alguns problemas, conseguiu levar Débora, com apenas 4 anos de idade, para um convento de Madres, no qual Débora passou a se chamar Zofia, já que seu nome original era facilmente identificado com judaico. Foram seis anos no Convento, e todo domingo, no horário da missa, Luba ia para o convento e entregava doces para cada uma das meninas, mas quando se encontrava com Zofia, dizia em seu ouvido: “Lembre-se de duas coisas: de que sou sua mãe e de que você é judia.” Foi finalmente no final da guerra que Luba e Zofia foram para a Inglaterra, e de lá para São Paulo, onde hoje posso dizer com muito orgulho que conheço Zofia pessoalmente.
A história verídica que acabo de contar-lhes é uma das milhares de histórias de luta e sobrevivência sobre o período da Segunda Guerra Mundial, em que seres humanos desesperados buscavam quaisquer alternativas para tratar de sobreviver. A discussão de hoje é muito mais complexa do que a simples proibição ou não de um livro: trata-se do livro que marcou o mundo com cerca de 60 milhões de pessoas caídas, tornando-se o conflito mais sangrento e triste da história da humanidade.
Mas, afinal, do que se trata Mein Kampf? É o texto que sintetiza as ideias do nazismo e cuja publicação incitou diretamente, por meio da ação de seu autor, Adolf Hitler, a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a ocorrência do Holocausto entre os anos de 1933 e 1945. Minha Luta não é apenas um livro, mas um símbolo, talvez o símbolo máximo, do nazismo e de seus crimes. Como afirma a filósofa e sobrevivente Hannah Arendt, o Holocausto e os crimes nazistas foram crimes contra a Humanidade, crimes contra a diversidade humana e a própria ideia de Humanidade.
Minha Luta não foi escrito diretamente por Hitler, mas ditado por ele ao seu ajudante de ordens, Rudolf Hess, quando estava na penitenciária estatal da Baviera após o malsucedido putsch de Munique, em novembro de 1923, que foi uma primeira tentativa de Golpe de Estado por Hitler. A obra foi lançada na Alemanha em dois volumes, o primeiro em 1925 e o segundo em 1926, quando seu autor já estava em liberdade.
Defendo a publicação do livro como este se tornando um documento histórico. Mein Kampf não pode ser visto “só” como um texto racista, preconceituoso e discriminatório que – sem dúvida – é. Ele é um documento histórico importantíssimo para as novas gerações. O livro é uma forma eficiente de educar e mostrar o quão absurdas eram essas ideias. Curar uma tragédia dessas se faz por meio da educação, transmitindo lições morais e éticas.
O historiador Nélson Jahr Garcia disse que Mein Kampf foi a melhor obra já escrita contra o próprio nazismo: “Quanto mais se conhecer, maiores se tornarão o repúdio e a aversão”, afirmou o historiador.
Acreditar que o livro pode servir de inspiração para a “onda neonazista” acaba sendo um engano. A obra, em pleno século XXI, só é capaz de convencer aqueles predispostos. A obra de Hitler triunfou porque oferecia respostas fáceis aos problemas dos princípios do século XX. Mas elas não funcionam para o mundo atual. Um estudo da Universidade Humboldt de Berlim apontou que muito pouco de Minha Luta acaba sendo utilizado como influência para os atuais grupos neonazistas.
Assim, a tentativa de ocultá-lo apenas serve para aumentar o atrativo do proibido e do ilegal. Vale ressaltar que existe uma série de documentos e discursos (inclusive do próprio Hitler) que incitam o ódio de forma muito mais direta e radical do que no livro.
Nenhum Estado democrático tem o direito de censurar a história. Proibir a publicação do texto, como a Justiça brasileira está buscando fazer, seria equivalente a fechar as visitações aos campos de concentração e extermínio na Europa. É importante não só que eles sejam conservados como também que sejam visitados por muitos, para que os horrores do Holocausto não se apaguem da memória coletiva. O que visitamos em Dachau ou Auschwitz, por exemplo, tornam-se memoriais e museus de um dos principais ícones da Segunda Guerra. Minha Luta se tornaria mais um documento histórico que ressaltaria o quão assustadoras foram as ideias do regime nazista. O que o Estado democrático precisa fazer é assegurar, por meio da força se necessário, que não as colocarão em prática.
Ressalto também que o livro está permitido para ser circulado na Alemanha e em Israel, onde foi liberado em 1999 e proporcionou grandes avanços nas pesquisas históricas sobre o período.
Dessa forma, a construção de uma memória coletiva universal do Holocausto pressupõe a transformação de traumas em lições, de comoção em consciência histórica, de dor em ensinamentos. E a principal coisa que consolida essa memória é a publicação de Minha Luta, obra-mãe da maior catástrofe da história da humanidade.
Por que proibir o livro de Hitler?
(Pedro Sant’Anna)
A Segunda Guerra Mundial chegou ao fim em 1945, há pouco mais de 70 anos. Houve 75 milhões de mortes, de acordo com a maioria das estimativas, sendo 40 milhões de civis. Acredita-se que quase 15 milhões de pessoas tenham morrido como consequência direta da ideologia nazista, sendo que mais de 6 milhões de judeus foram mortos de forma sistemática, por meio de um genocídio deliberado. É impossível que a humanidade se recupere de tamanhas atrocidades em tão pouco tempo.
É inegável que, ainda hoje, convivemos diariamente com pessoas cujos antepassados sofreram com o nazismo, e tiveram que migrar para outros países fugindo do Holocausto ou que até mesmo foram assassinados pelas forças lideradas por Hitler. Vivemos em um país em que existem atualmente mais de 300 células de propaganda nazista, assim como cerca de 3000 páginas de internet – considerando-se sites, blogs, fóruns etc. – controladas por neonazistas. Nesse sentido, ainda estamos historicamente muito próximos dos horrores da Segunda Guerra, e suas consequências são ainda extremamente marcantes em nosso país. Portanto, não devemos adotar uma visão distanciada em relação ao conflito, uma vez que ele ainda reverbera em nossa sociedade atual e tem enormes consequências sobre ela. E não podemos liberar a circulação comercial do livro que é o símbolo máximo dessa abominável ideologia.
Essa proibição não é, de forma alguma, censura. No artigo 4, inciso VIII, da Constituição Federal, está explícito o princípio de repúdio ao racismo e ao terrorismo. Além disso, um dos princípios fundamentais que regem nossa democracia é o respeito aos direitos humanos e à dignidade humana. Entretanto, o livro Mein Kampf – Minha Luta, em português – serve simplesmente para propagar o ódio e incitar o extermínio em massa, tal qual ocorreram durante o período nazista. É obrigação do Estado proibir a disseminação de discursos que fomentem o racismo na sociedade, como forma de assegurar a todos sua liberdade e dignidade.
Não é a primeira vez que o judiciário brasileiro toma decisão similar à de proibir a circulação do livro de Hitler. Em 2003, a mesma medida foi tomada em relação aos livros escritos por Siegfried Ellwanger, que propagavam o antissemitismo e negavam a existência do Holocausto. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal definiu o antissemitismo como crime de racismo, condenando Ellwanger à prisão e retirando seus livros de circulação. Há, portanto, um precedente para a proibição de obras que disseminam o racismo no Brasil, ou seja, tal decisão não seria inédita na história do Direito brasileiro.
Assim, proibir a circulação do livro de Hitler não significa atentar contra a liberdade de expressão. Em primeiro lugar, porque existem edições críticas, destinadas ao trabalho de especialistas, à disposição destes em bibliotecas e universidades do Brasil. Em segundo, porque o livro fere a dignidade humana na medida em que veicula as ideias preconceituosas responsáveis pelo que foi o nazismo.
Os defensores da publicação do livro afirmam que este tem valor como documento histórico. É preciso, porém, que se diga: o valor histórico de Minha Luta é praticamente nulo. O livro não passa de uma reprodução escrachada de um discurso de ódio, repleto de clichês, repetições e falácias. Nesse sentido, ele nada tem a acrescentar para o conhecimento de alguém sobre o nazismo.
Afirma-se também que proibir a circulação do livro de Hitler é uma medida ineficiente, uma vez que a obra pode ser facilmente encontrada na internet. Essa visão, porém, é ingênua por desconsiderar que, na internet, são encontrados diversos outros conteúdos que jamais seriam publicados comercialmente em um país democrático – manuais de pedofilia e de tortura são dois exemplos de textos que podem ser encontrados facilmente na rede de computadores, mas que nem por isso tornam-se legítimos ou legais. Além disso, o acesso a materiais na internet é de responsabilidade individual, ao contrário do que ocorre no caso da publicação do livro.
Para além do âmbito jurídico, o debate em torno da liberação da circulação comercial de Minha Luta levanta questionamentos na esfera da Ética. Até que ponto é válido lucrar divulgando ideias como as de Hitler? No Brasil, assim que o livro adentrou o domínio público, duas editoras se propuseram a vendê-lo, o que expõe a realidade de grande parcela do mercado editorial brasileiro: a disposição para fazer de tudo em busca do lucro. De fato, tentar tirar vantagem da venda das ideias do homem responsável pelo extermínio em massa que foi o nazismo é uma atitude deplorável.
Sou, portanto, contrário à publicação do livro de Hitler no Brasil. Sobretudo porque proibir a circulação comercial de Minha Luta é uma medida necessária como forma de preservar as liberdades sociais e de proteger os direitos humanos. É também um modo de impedir o crescimento de discursos antissemitas e racistas na sociedade. Por fim, porque tal medida é constitucional e está dentro dos termos da lei brasileira. E porque, em tempos como os atuais, em que ainda são comuns atos de ódio e de violência contra alguns segmentos da população, colocar em circulação ideias nocivas como as de Hitler é algo extremamente perigoso.