Sobre “As Benevolentes – uma anatomia do mal”

20 de abril de 2016


As benevolentes eram deusas gregas responsáveis pelas punições aos mortais. Na obra de Ésquilo, dramaturgo grego (525 a.C. – 456 a.C.), elas se dividiam em três: Alecto, encarregada de castigar os delitos morais, como a ira, a cólera e a soberba; Megera, que castigava os delitos contra a infidelidade; e Tisífone, a vingadora dos assassinatos. Elas perseguiam suas vítimas, ameaçando-as, gritando em seus ouvidos os males que tinham feito, reforçando e relembrando as terríveis memórias, não possibilitando qualquer minuto de paz ou esquecimento. Elas simbolizavam na antiga Grécia o que hoje chamamos de consciência, a capacidade humana de julgamento.

A montagem teatral de As Benevolentes, inspirada no livro homônimo do escritor Jonathan Litell e dirigida por Ulysses Cruz, trata exatamente disto: um monólogo sobre a consciência de um ex-oficial nazista pertencente à SS que atuou diretamente nos massacres ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. Maximilian Aue, interpretado pelo ator Thiago Fragoso, é um personagem ambíguo, que oscila entre a razão e a loucura, a angústia e o desespero, a sedução e a ameaça.

O formato da peça, assim como sua principal ideia, já causa certo desconforto. O impacto que o monólogo apresenta já seria suficiente para despertar o público, no entanto todo o cenário, a iluminação, a música, o figurino e, sobretudo, a ação do ator em cena servem para manter o espectador aprisionado ao personagem. Ouvir o lado do carrasco não é fácil, e torna-se ainda mais difícil à medida que se percebe em Aue nossos próprios medos e receios. O personagem, antes de ser um vilão, representa um ser humano, de carne e osso, vulnerável a erros.

Isso nos leva a uma das partes mais cruciais do enredo. Maximilian Aue, já retirado do invólucro dos inúmeros preconceitos sofridos pelos carrascos, dirige-se, enérgico, a um público bem mais aberto. Exclama: “No meu caso, vocês teriam feito o mesmo!”, e acrescenta que foram raros os que se revoltaram, muitos os que se mantiveram calados e poucos os que lutaram, dispostos a perder a vida, contra o regime dentro da Alemanha nazista. Nessa hora, frio e calculista, ele conta o número de pessoas na plateia e chega à conclusão de que, sem dúvida, a maioria se manteria inerte. O enredo não só disseca os tormentos e sentimentos do protagonista, mas também analisa e critica os do próprio espectador. O ex-agente da SS cresce aos olhos do público de forma intensa, próximo e similar a todos ali presentes. Inúmeros questionamentos passam por nossas cabeças: “Será que realmente seríamos diferentes?”; “será que a morte de uma criança judia numa câmara de gás ou num fuzilamento e a de uma criança alemã em um bombardeio é apenas uma diferença de meio?”. Sente-se o peso da consciência, assim como o sofrimento das confissões e os questionamentos, pois se projeta em si mesmo a descoberta do mal inerente à nossa espécie, representado no desfecho do espetáculo quando Maximilian Aue enrola-se numa capa vermelha e repete, numa espécie de terrível tormento: “Eu sou humano, eu sou humano.”

A força do espetáculo reside no que ele provoca para fora da sala de teatro. No mundo cada vez mais intolerante em que vivemos, onde os preconceitos, o ódio, as guerras, os atentados terroristas, as lideranças fascistas ressurgem com força, a peça é mais do que uma reflexão sobre antigos acontecimentos, ela é uma ferramenta imprescindível para a compreensão dos dias atuais, já que dialoga com situações presentes em nossas vidas a todo momento.

Beatriz Diniz Canedo é aluna do 2º ano do Ensino Médio.